Quando eu comecei esse blog, eu dei o subtítulo de “diário de um rubyista”. Quase imediatamente eu mudei para “diário de um desenvolvedor de sistemas”, e agora estou mudando de novo.

Existe um motivo pra isso, assim como existe um motivo para um monte de coisas que fazemos e que não nos damos conta. Conforme o tempo foi passando, muitas coisas mudaram na minha vida pessoal e profissional, e me fizeram repensar minha própria identidade.

Talvez esse pareça ser um assunto muito filosófico pra um blog técnico, mas de qualquer maneira, acho importante que ele seja mencionado. Eu conheço muita gente que se deixa definir pela linguagem que usa. Há vários blogs online que, por exemplo, se recusam a aceitar críticas da sua linguagem preferida, de seu framework, num nível que parece irracional. Na verdade, Martin Fowler já falou sobre isso num artigo simples chamado keep your identity small. E é sobre isso que eu vou falar.

Muitas coisas aconteceram desde que comecei a escrever nesse blog – a ideia original dele era divulgar coisas interessantes, intermediárias para avançadas, para um público que fala português – e esse último detalhe é importante também. Por que meus subtítulos do blog foram “diário de um rubyista”, quando não era esse o intuito do blog, é algo que eu não sabia dizer – até agora.

Desde quando eu comecei a escrever nesse blog, muita coisa aconteceu – eu tinha criado a equipe de desenvolvimento de sistemas na UFABC, supervisionei essa equipe por muito tempo, depois uma série de movimentos políticos (que só quem trabalha num cargo público consegue compreender quão imensos eles são por assuntos tão pequenos) fui retirado do cargo, fiquei muito chateado, e abri mão da “estabilidade” (entre aspas mesmo) do cargo público pra tentar viver outro tipo de vida.

Além disso, eu tirei carta de moto, comprei uma moto, mudei de casa, casei, mudei de emprego outras duas vezes, mudei de linguagem, de editor, de infra, fiz duas viagens grandes de moto pelo Sul do Brasil com minha esposa, comecei a tirar fotos, enfim. Eu posso dizer com absoluta certeza que alguém que me viu no passado não me reconheceria hoje. E tudo isso me fez repensar a ideia de “ser um desenvolvedor”.

Talvez o termo mais correto é que eu “estou” um desenvolvedor. É muito comum para todos nós, especialmente pessoas que gostam de seus trabalhos e de suas ferramentas, que se identifiquem com elas. Isso é perigoso para dizer o mínimo – se eu me identificasse como um rubyista, eu não teria hoje a oportunidade de trabalhar com Clojure.

Da mesma forma, eu cometi muitos erros com a cultura do ownership – uma coisa relativamente moderna e de muitas start-ups aonde espera-se que o funcionário sinta-se dono da empresa também. Isso foi também identificação com coisa errada – na UFABC, por exemplo, eu me identifiquei – eu deixei minha identidade ser definida – como um funcionário público que não faz corpo mole. Na prática, a cultura do ownership é uma grande farsa – o funcionário é enganado e levado a acreditar que ele é mais do que ele é. Isso não significa que alguém não deve se dedicar ao trabalho – significa que a dedicação deve ser pelo motivo certo. Eu não me dedico à empresa X porque eu sou também dono dela, eu me identifico porque alguém me contratou, me pôs para dentro dela, e espera que eu faça o meu trabalho. É uma ideia simples e que por vezes é diminuída – fazer o seu trabalho, o que se espera de você, é obrigação sua – não é obrigação sua dedicar mais tempo do que que o que se é pago, não importa quão alto é o salário ou quão legais são as pessoas. Além disso, a empresa não é sua, você não vai ganhar mais por chegar estressado em casa,

O problema é que a empresa em que estamos tem suas próprias culturas e ideias. Ela tem sua própria identidade, ou ausência de, que normalmente não bate com a nossa. E é simplesmente impossível você mudar a identidade de uma empresa pra bater com a sua, pois a empresa é formada de várias pessoas, cada uma com sua identidade.

A vida de casado também traz uma nova luz sobre o assunto de identidade. Uma vez casado, eu sou também marido, esposo, e futuramente, pai. Minha vida como “desenvolvedor” toma cerca de 12 horas de minha vida – considerando que eu demoro uma hora e meia pra ir pro trabalho, e eu tenho uma hora de almoço. Por que a identidade “desenvolvedor” toma tanto mais tempo da identidade “marido”? A maioria das empresas modernas conhecem a relação entre o empregado e os horários de trabalho, e sabem que o funcionário não é produtivo 100% do tempo – ao mesmo tempo, é impensável uma empresa que adote um esquema de trabalho de 6, 5 horas diárias aqui no Brasil – ou mesmo que apresente verdadeiramente horários flexíveis, aonde você poderia ganhar apenas o que você trabalha – e isso não é por causa da “CLT” – a maioria dos empregos contatando por pessoa jurídica pagam por horas, mas tente trabalhar menos de 8 horas diárias…

Além disso tudo, há também o status – tem um certo gostinho dizer “virei 3 noites para entregar esse projeto”, ou “estou trabalhando muito”, etc. Todos, ou pelo menos a maioria, desses “gostinhos” são ilusórios – nos iludimos achando que estamos “fazendo a diferença” mas, na prática, se estamos trabalhando em uma empresa que nos estimula a fazer isso, a empresa está de fato nos desrespeitando – e como toda falta de respeito, na primeira coisa errada que fizermos, seja por descuido ou porque viramos 3 noites e estamos muito cansados para raciocinar direito, a bússola da culpa estará apontada para nós.

Outro inimigo imenso de nossa identidade é a moda – eu, por exemplo, sou um desenvolvedor, e eu gosto de ser desenvolvedor. A maioria dos meus amigos que começaram a desenvolver no mesmo tempo que eu migrou para gerente, e a palavra da moda ainda é “devops”. Eu conheço pessoas que, de fato, não tem problema nenhum com devops, e eu não sou uma delas – minha vontade de mexer com infraestrutura é quase nula (e minha aptidão para tal não é das melhores). Não importa o stack da empresa em que eu estou, provavelmente eu não serei feliz sendo devop.

Porém, nenhum desses aspectos pode definir minha vida. Já me acostumei ao fato que minhas decisões provavelmente não serão entendidas, e provavelmente serão questionadas. Isso é completamente normal – mas, eu sei que em alguns momentos, eu ouvirei algo como “mas você não era de Ruby?”, por exemplo.

O fato é que a sociedade sempre tenta classificar, mesmo que o faça com coisas absurdas. Aquela pessoa de branco não tem nome e vontades e medos, aquela pessoa de branco é “médica”. Aquela outra pessoa que está saindo de casa às 10 da manhã de bermuda não tem um emprego bom, e assim por diante. E nós acabamos obtendo essa informação é deixando isso definir nossa identidade – e um dos exemplos mais perigosos é a identidade da pessoa bem sucedida – aquela pessoa que tem um emprego que paga muito por mês, CLT, que sempre está bem vestida num carro super luxuoso. O problema é que felicidade é um conceito particular – cada pessoa tem a sua – e temporal – cada fase da vida influencia nisso. Hoje, eu programo em Clojure. Amanhã, talvez em Haskell, ou Scala. Depois de amanhã, pode ser que eu vire fotógrafo.

Tudo isso é parte do que fazemos. Quem somos é outra história. E, na sociedade moderna, o roubo e a substituição de identidade é uma atividade muito lucrativa.


3 Comments

thiagorails · 2016-09-06 at 21:53

Muito boa reflexão.

AntimidiaBlog · 2016-09-07 at 08:44

Republicou isso em REBLOGADOR.

anisioluiz2008 · 2016-09-07 at 08:47

Republicou isso em O LADO ESCURO DA LUA.

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