Esses dias, estava lendo um blog de um professor daqui da UFABC. Um professor que, conforme a noticia oficial, “faleceu em circunstâncias trágicas”. Não o conhecia, pessoalmente, mas gostaria mesmo de tê-lo conhecido. Alguém que possuía uma inteligência acima do normal, alguém que via e sentia acima de sua inteligência, inconformado com o mundo, e pelas suas postagens, inconformado consigo mesmo.

Alguém que juntou algumas cadeiras, no décimo primeiro andar do prédio, e de lá se atirou.

Não quero discorrer sobre o quão certo ou errado isso é. Religiões o culpariam, alguns apontam o dedo e dizem “suicida!”, mas a verdade é que: 1) ninguém sabe o que ele estava passando (nem mesmo eu, só posso deduzir brevemente pelo seu diário abandonado na internet), e 2) eu acredito, sinceramente, que cada um de nós é dono de sua própria vida, por mais que algumas religiões insistam em contrário, por mais que a própria lei brasileira criminalize o suicídio. Sua escolha foi errada? Sim, pelo lugar escolhido. Acredito que muitas pessoas devam ter sido obrigadas a ver algo que não estavam preparadas, mas também, vejo que isso expõe certas verdades ocultas.

Em primeiro lugar, por que escolher a universidade, seu local de trabalho? Por que escolher logo a entrada do prédio, um lugar aonde todos veriam sua decisão, e ao mesmo tempo ter pensado em um lugar aonde, com toda a certeza, ele não cairia sobre ninguém?

Sua morte foi noticiada como “circunstâncias trágicas”. Claro, suicídios normalmente incitam mais suicídios quando são noticiados como tal. Não caberia uma discussão maior sobre o assunto? Por que ocultar um suicídio com medo de uma “epidemia”, ao invés de tentar evitar que as pessoas tenham essa vontade? Se é sabido que isso gera epidemia, por que não estudar e tentar minimizar os motivos que levam pessoas a quererem tirar sua própria vida? Ou será que isso não é, digamos, interessante para a “sociedade”? Eles realmente não acham que criminalizar o suicídio, ou dizer “quem se mata vai pro inferno” vai evitar esse tipo de incidente, não é?

Já fazem alguns meses que ele faleceu, e seu blog continua no ar, no endereço http://dedalus-atlas.blogspot.com/. É estranho ler o blog de alguém que não está mais vivo, especialmente quando as palavras que ele escreve ainda parecem tão vivas. Além disso, é estranho esperar uma postagem nova, e saber que não vai haver nenhuma.

Seu último post é assustador, e mostra um estado de espírito que eu já sinto que passei, e conheço muita, muita gente que também já passou por isso. E isso é algo que me inspira a escrever: por quê? Por que essa frustração sem sentido, esse sentimento tão ruim, preso dentro de tanta gente que tem mais capacidade de questionar? Será esse o problema, vivemos em um mundo no qual as coisas devem ser aceitas, sem ser questionadas? Devemos aceitar o céu sujo, o ar tóxico, a água nojenta, os impostos revertidos em dinheiro para alguns privilegiados? Devemos, apenas, ser conformados que o mundo é o que é, escondidos das verdades tal como a notícia que um professor se jogou do décimo primeiro andar do único prédio pronto da universidade, por motivos que provavelmente são a própria universidade (ou o meio acadêmico) e seu relacionamento com ela? Em um de seus textos:

Na academia, o lema é publicar ou perecer: e assim pilhas de palavras, gráficos e equações são produzidas apenas para aumentar a quantidade das coisas que irão, rapidamente, para o lixo da história, inflando por algum tempo o ego e a reputação local de alguns. Meus colegas cientistas são todos mais produtivos (…) que eu. No entanto, duvido que daqui a cem anos algo que algum deles – e que eu – tenha publicado até hoje venha a ser lembrado…

Pois é, não quero entender como tanta energia pode ser gasta em tanto trabalho vazio: acho mesmo que eu já deveria estar no lixo. Só que, enquanto isso não acontece, irracionalmente continuo produzindo textos vazios como estes.

O que o professor não percebeu, talvez, na época de escrever esse texto é como ele é profundo. Como ele expõe, especialmente estando dentro da comunidade científica acadêmica, todos os problemas que ele não pode expor como cientista, tudo o que se ignora ao “publicar ou perecer”.

Eu preferiria que existisse uma coisa só, chamada de alma humana, sem gênero, só intelecto e emoção, sem preferências ou influências sexuais. Mas tudo isso parece ser bobagem: o que há somos nós, animais que pensam que pensam, presos a hormônios e regras sociais, e o resto é ilusão.

Post apresentado quando ele vê o “paradoxo sexual”, o fato de mulheres não gostarem tanto de física. Em seu blog, parece-me que o que ele mais gostava da física é de “saber como o mundo funciona”, e incomodava-o, nessa postagem, que a maioria das pessoas que “quer saber como as coisas funcionam” sejam homens. Talvez um desespero por amor, amor de alguém que, como ele, fosse um inconformado, e que juntos pudessem discorrer de como as coisas realmente funcionam, de como as coisas realmente são, por trás do monte de coisas que nos empurram fazendo de conta que “as coisas são assim, ame-as ou deixe-as”.

Seu suicídio só mostra sua opção. Incapaz de amar esse mundo, do jeito que as pessoas insistem que ele é, ele o deixou.

Queria, de verdade, tê-lo conhecido. Talvez conversássemos, talvez ficaríamos amigos, talvez inimigos de primeira. Não dá pra saber. Muitas vezes, vejo pessoas na internet que parecem ser muito interessantes, e pessoalmente são insuportáveis. Talvez ele fosse assim, talvez não, e pudéssemos discutir juntos algumas coisas, algumas de suas postagens no blog. Mas parece que tudo o que o mundo não quer é que mais pessoas discutam tais assuntos, e talvez seja por isso que só conheci o blog dele depois de sua morte.

É estranho pensar nisso, na verdade. É necessária a morte de alguém, para que você conheça finalmente o “lado B” de sua vida, um blog, um diário na internet, expandido, aonde as frustrações aparecem. Tal como eu tenho, tal como sabe-se lá quantas mais pessoas têm, apenas para ficar guardados, e algum dia, se você tiver a oportunidade, lê-lo e entender, talvez, porque algumas ações daquela pessoa não faziam sentido…

Desde quando nossa “humanidade” foi substituída por uma máscara robótica, sem sentimentos verdadeiros, e viramos esse poço de sentimentos contraditórios, escondidos do mundo, prontos para explodir e, quando isso acontecer, recebermos talvez o julgamento excessivo das pessoas ao redor, reprimendas, só para nos vermos sozinhos, frustrados, e agora com uma série de sentimentos que não podem mais ser escondidos?

Jung definiu algumas “regrinhas” sobre personalidade, que minha psicóloga chama de “quadrantes de Jung”. A idéia é que as pessoas possuem normalmente duas características bem fortes entre: Sensibilidade, Intuição, Razão, e Emoção. Parece que, em muitos empregos, é importante ter a “Razão”, mas o restante pode ir pro espaço. Quantas vezes eu, e mais uma série de amigos meus, “sentiram” que havia algo de errado na solução adotada, mas não souberam explicar o que, pra depois verem que realmente havia algo errado? Engraçado pensar que o próprio Einstein já dizia frases como:

“Imagination is more important than knowledge. For knowledge is limited to all we now know and understand, while imagination embraces the entire world, and all there ever will be to know and understand.”

“Logic will get you from A to B. Imagination will take you everywhere.”

E a que eu mais gosto: “It has become appallingly obvious that our technology has exceeded our humanity”. Só acho, talvez, que ela esteja um pouco desatualizada: acho que no lugar de “technology” a citação deveria mencionar “society”.

É estranho escrever esse post tanto tempo depois da morte do professor. Mas foi algo que vinha me incomodando de uns tempos para cá, mas não sabia como colocar em palavras. Talvez, o que me incomodasse não fosse o fato, mas as circunstâncias que levaram ao acontecimento, o tratamento da situação. Em seu blog, ele cita que “provavelmente não vão lembrar dele”. Eu, pelo menos, não me lembrarei dele pela publicação científica dele, nem por seus trabalhos, nem por sua “inteligência”, seu títulos, mas pelas suas palavras em seu blog, em “seu mundo virtual”. É uma pena que ele não tenha percebido, verdadeiramente, aonde estava seu real valor: não em seus títulos, em suas publicações, mas nesse blog, nessas palavras, nessa sensibilidade e poesia. Nessa humanidade, que por algum motivo, me parece que ele não conseguiu (ou não podia) expressar em sua vida. Seu real valor, assim como o real valor de todas as pessoas, está na pessoa, no humano que existe dentro de cada um, e me entristece ver que o mundo em que vivemos tenta esconder os humanos da sua humanidade.

Sandro Silva e Costa faleceu dia 21/10/2010. Acredito que muitas pessoas o conheceram, mesmo, nesse dia. Na minha opinião, esse é o fato mais lamentável de toda a história.


1 Comment

Antonio · 2022-11-09 at 22:10

Topzera de mais Maurício! Obrigado pelo post. 🙂

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